quinta-feira, 22 de abril de 2010

O enterro das ilusões

Cynara Menezes
Carta Capital n° 592 - 21 de abril de 2010 - Pag. 54
www.cartacapital.com.br

Secretária-executiva da Cepal afirma que o mundo precisa de mais e melhor Estado

Referência e celeiro de muitos dos pensadores autônomos entre o México e a Patagônia, a Comissão Econômica para a América Latina (Cepal), fundada em 1946, viveu um ostracismo durante a hegemonia do pensamento neoliberal no continente. O tempo – e a crise mundial – se encarregaram de dar razão aos chamados cepalinos. “A crise levou a humanidade inteira a ver que se requer um papel muito mais ativo por parte do Estado, um ente público que regula, fiscaliza, observa, monitora”, defende a mexicana Alicia Bárcena, primeira mulher a se tornar, a partir de 2008, secretária-executiva do órgão das Nações Unidas. Bióloga com mestrado em Administração pela Universidade de Harvard, Alicia Bárcena vai além ao assumir o chamado de sua geração e questionar o próprio capitalismo.

CartaCapital: Por que houve forte diminuição da pobreza na América Latina, mas não da desigualdade?
Alicia Bárcena: A pobreza diminuiu na América Latina sobretudo entre 2002 e 2008. Nesse período de bonança, baixou de 44% a 33%. Na realidade, também ocorreu uma diminuição da desigualdade em cerca de oito países da região, entre eles o Brasil. Foi a primeira vez na história que isto ocorreu. Um aspecto que ajudou foi a transição demográfica, a razão de dependência nos lares baixou. Há menos dependentes por domicílio e, portanto, aumenta o poder aquisitivo. Este não é um fator controlável, mas foi positivo para a redução da pobreza. Há cada vez menos crianças de zero a 5 anos nas casas. De qualquer forma, é uma janela de oportunidades que vai se fechar porque os maiores de 60 anos também estão chegando à velhice.

CC: Mas continuamos sendo o continente mais desigual.
AB: Sim, continuamos a ter a pior distribuição de renda do planeta. Isto ocorre porque há uma concentração escandalosa em alguns países, sobretudo, e também uma pobreza extrema. Os programas sociais na região têm conseguido fazer os mais pobres ascenderem, mas é preciso também programas de redistribuição de riqueza.

CC: Em termos práticos, o que se pode fazer?
AB: Uma política fiscal com enfoque redistributivo. Ou seja, que por um lado se estabeleçam impostos diretos sobre a renda e onde aqueles que ganham o mesmo, nos níveis mais altos, paguem impostos de forma paritária, sem exceções ou lacunas tributárias. E que se possa expandir a base tributável. Sei que não são boas notícias, mas é necessário.

CC: Essa fase de bonança à qual a senhora se refere tem a ver com a eleição de presidentes de esquerda na América do Sul?
AB: Houve uma combinação positiva, não só no Brasil, mas também na Venezuela, no Chile e na Bolívia, de prudência macroeconômica com uma política social progressista. Essa combinação foi muito importante para a política social e para a igualdade. A política fiscal, a estabilidade, o superávit primário e o crescimento de nada servem sem política de igualdade. Houve na região, nesta última década, pacotes de políticas sociais muito efetivos, como, por exemplo, as transferências condicionadas. Essas transferências tiveram bastante sucesso em chegar à pobreza mais dura, aos mais miseráveis. Alguns deles lograram sair dessa pobreza.

CC: Há quem acuse de assistencialistas esses programas de complementação de renda.
AB: Nós, na Cepal, temos muito claro que são uma parte essencial da política social. A comissão estudou a fundo o chamado Bolsa Família no Brasil, o Chile Solidário – há 17 países que aplicam esses programas. E é mínimo o investimento de dinheiro público diante do tremendo benefício social que tiveram. Foram eficazes em tratar de complementar a renda das famílias mais pobres ante uma razão de dependência menor. É inegável a importância desses programas ao dar prioridade à alimentação infantil, porque se investe na geração seguinte. Quando não se alimenta a criança entre zero e 5 anos, perde-se uma geração. Além do mais, determinam que as crianças vão à escola. Então não é a fundo perdido, é um investimento. Agora, não se trata de um programa eterno. É preciso que se saia da pobreza. Não necessariamente colocar mais pobres para fazer parte do programa, e sim o contrário.

CC: Dizem os críticos que esses programas deixam as pessoas preguiçosas, que não vão trabalhar porque têm dinheiro garantido.
AB: Pois o que temos visto é que é um programa que confere maior poder às mulheres em casa, porque essa renda adicional se dá a elas, cabe a elas administrar o dinheiro. Esse fortalecimento de gênero é um tema muito interessante, porque a mulher, e isso temos visto em diversas partes, consegue inclusive economizar um pouquinho e investir em uma atividade produtiva. Quando se combina com o acesso ao crédito, à propriedade, pode incrementar os ativos de uma família. E as cifras falam por si mesmas. Entre 2002 e 2007, a pobreza no Brasil caiu de 34% a 23%, a indigência de 14% a 7,9%. Estamos falando de um período onde se trabalhou profundamente contra a pobreza e o Bolsa Família alcança 11 milhões de lares. É muito forte. A queda da pobreza no Brasil é impressionante. Aos críticos do programa, acho que os dados dizem tudo.

CC: A senhora costuma falar que para o futuro será necessária uma mudança de modelos na América Latina. De que tipo?
AB: Em primeiro lugar, não existe um só modelo para a região. Estamos nos afastando da visão de que há fórmulas únicas. Temos de nos afastar daquele pensamento de que o mercado é a solução, onde a autorregulação é a solução. Não foi a Cepal, foi a crise que levou a humanidade inteira a ver que a autorregulação não funcionou e que se requer uma maior supervisão, um papel muito mais ativo por parte do Estado, um ente público que regula, fiscaliza, observa, monitora. Todos temos a visão de que é preciso encontrar uma nova equação nas relações entre o Estado, o mercado e a sociedade.

CC: Mas a intervenção do Estado na economia continua sendo muito malvista, não? Aqui, a candidata do governo é acusada de ser estatizante, como se fosse uma assassina ou algo do gênero.
AB: Tudo depende do que se entenda por isso. Estamos preparando um documento sustentando que o Estado deve ter, não diria intervenção, mas uma ação para o fornecimento de bens públicos. Nisso o mercado autorregulado não foi bem-sucedido, essa é a verdade. Portanto, o que se requer é mais Estado, melhor Estado, mais mercado, melhor mercado. A dicotomia “ou Estado ou mercado” é falsa. Creio que é necessário um equilíbrio. Antes havia um desequilíbrio onde reinava o mercado. É a partir do Estado que se podem conseguir regras claras do jogo, estabilidade política de longo prazo. O próprio setor privado requer regras claras. Estamos fazendo propostas audaciosas. Uma delas é o controle das contas de capital. Pensamos que o Estado deve ter uma atitude concreta sobre a entrada dos capitais em um país onde o ideal é que entrem, mas em investimentos produtivos, na geração de emprego. No Brasil, o Estado já tem uma atitude proativa e isso foi muito exitoso. Os resultados estão aí.

CC: A senhora fala em desenvolvimento na América Latina e não crescimento. Qual é a diferença?
AB: O crescimento só, a estabilidade só, está bem, mas o que queremos é um maior desenvolvimento social, um maior desenvolvimento sustentável. Ao fim e ao cabo o que se busca é o bem-estar, não a acumulação de bens por uns poucos. O que se busca é o desenvolvimento de uma maior quantidade de gente, que a população, mais que mão de obra barata, se converta numa fonte muito importante de riqueza, pelo consumo massivo.

CC: Como predisse o presidente Lula, a crise no Brasil foi uma marolinha. E nos outros países da região?
AB: A queda do PIB no Brasil foi de 0,2%. Compare com o do México, de 6,5%... Quando os EUA, epicentro do terremoto, caíram, levaram o México junto. As partes mais afetadas da região pela crise foram o México, a América Central e o Caribe, e muito menos a América do Sul. O Brasil é a economia que está saindo mais rápido da crise, mas também o Chile, o Peru e a Bolívia também não estão mal. Tem a ver com o fato de que são economias que possuem commodities muito estratégicas, com preços bem fixados. Talvez o grande desafio do futuro seja como tratar o tema dos preços das commodities e como manejar o excedente.

CC: A Cepal tinha uma previsão de aumento do desemprego na região?
AB: Para 2009, nossas estimativas eram de 9% e fechamos o ano com uma estimativa muito mais baixa, de quase 8,1%. Isso foi o efeito de algumas das políticas contracíclicas aplicadas pelos governos, inclusive no Brasil, que fechou com um desemprego abaixo da média da região. Houve programas deliberados para a manutenção do emprego, estabilizadores automáticos como o seguro-desemprego. É preciso dizer que as pessoas não saíram a buscar trabalho em tempos de crise, mas, por outro lado, houve programas de caráter público que motivaram as empresas, como no Brasil os subsídios à indústria automobilística atados à não demissão. Na Argentina e no Chile, houve iniciativas parecidas e renderam frutos.

CC: Houve um economista brasileiro de direita, Roberto Campos, que costumava dizer que o desemprego é o único defeito do capitalismo. E, de fato, ele está em todas as partes. Não existe solução para o desemprego?
AB: Devolvo a pergunta: é o capitalismo a solução para a sociedade? Tenho dúvidas. Sinto-me mais seduzida pelos ideais de uma geração do que de uma certa vertente. Atrai-me muito o tema da igualdade social, creio profundamente na necessidade de persegui-la.

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